31 julho 2009

A cena.

Apesar de ter muita coisa pra fazer, lá estava eu andando pela Paulista. O clima frio, as pessoas passando por mim, meu olhar contemplando tudo. Parei para descansar num lugar a salvo do vento, tirei um livro da mochila. Logo apareceu uma senhora. Me chamou e disse que estava com frio, e que não tinha como pagar um café para se aquecer. Eu disse que, infelizmente, também não tinha como pagar um café, nem para mim... Silêncio. Ela disse que trabalhava em igreja, e me perguntou de qual santo eu era devoto. Respondi que não sabia como escolher um santo para ser devoto. Ela perguntou se eu queria um santinho. Agradeci e respondi que não queria, e perguntei como eu escolhia um santo. Ela não respondeu; escolheu um para mim, me deu, se despediu e foi embora.
OK, agora a cena como aconteceu de verdade.
Eu estava na Vergueiro e precisava ir até o final da Paulista pegar um livro, sendo que estava um frio do cão e chovendo. Fiz esse caminho a pé pra não pagar ônibus, muito menos metrô. O clima superfrio, as pessoas passando azuis por mim, meus olhos congelando. Finalmente cheguei no meu destino e entrei correndo no Conjunto Nacional. Fiquei embaçando na Cultura até cansar, e com todos os pufes ocupados por gente lendo de graça, resolvi procurar um banco do lado de fora pra descansar. O único disponível ficava num corredor de vento. Tirei um livro chato da mala pra esquecer do frio, e eis que aparece uma "melhor idade" cheia de sacola, tirando as sandálias e espremendo as meias. Só fiquei esperando. Levou pouco tempo para ela começar a narrar suas desgraças e, no final, pedir dinheiro para um café. Falei que estava cansado de ser assaltado (fui uma vez) e, por isso, não andava mais com dinheiro. Como ela ficou muda, eu não sabia se podia voltar à minha leitura, então ficou aquele climão por alguns momentos até eu resolver ler - e claro, foi só recomeçar pra ela falar alguma coisa. Disse que trabalhava em igreja, e eu pensei "só falta ser tipo testemunha de jeová" (errei). Eu disse que não era devoto de nenhum santo, e que escolhi um para ser na catequese, e peguei o que era do dia do meu aniversário. Ela perguntou se eu não queria um santinho, e como se me conhecesse há anos, disse "é de graça". Apesar de insistir em não querer, ela me deu um da nossa senhora. Nossa Senhora da Cabeça.

Nossa Senhora da Cabeça. De onde surgiu isso?

Comecei a ler o santinho, tentando achar alguma justificativa para a existência de uma imagem santa segurando uma cabeça sem corpo, e até tinha. Depois de ler tudo, achei que deveria continuar demonstrando interesse, já que era de graça, e fingi que ainda estava lendo, mas a situação começou a ficar insustentável. Disse obrigado e comecei a me ajeitar pra cair fora, mas ela disse "tchau pra você" e caiu fora antes, provavelmente buscando um outro banco no qual tivesse mais sorte. Ainda saiu mancando para dar o toque dramático.
Nossa conversa foi bem amena, na verdade. Abusei de eufemismos e tentei puxar conversa, até, como ao perguntar como se escolhe um santo, para evitar climão e por um motivo constrangedor: para tentar fazer aquilo virar uma... cena. Gosto de ver momentos como cenas. Andar na rua ouvindo música com fones isoladores de som, por exemplo, só não vira uma cena de filme perfeita porque tudo não se passa em câmera lenta. Como se não bastasse, numa mania estranha, fico tentando tirar filosofias, significados de qualquer coisa. Aquela mulher que eu nunca vi e nunca mais devo ver foi a chance de originar uma miríade de filosofias de bairro das quais tenho vergonha de ter pensado, e pior, de colocá-las numa "cena". Muito pior, num "filme". Sim, nunca serei roteirista.