26 dezembro 2009

Tradições de família.

O fim do ano me faz pensar em família. 19 fins de ano eu passei com a família, e neste que quis não passar com ela percebi que não tenho com quem passar. Achei que eu era o único órfão de fim de ano no mundo, mas vi que outras pessoas estão na mesma. (Isso eu não vi de um modo abstrato - foi pelo Twitter, mesmo.) Como se não bastasse o estado ruim no qual fiquei pensando que, fora a família, eu não tenho mais ninguém, a última crônica da Vejinha desse ano é sobre passar o Natal sozinho.
Pensei no que vai ser de mim quando não houver mais família, ou até se isso algum dia vai acontecer, porque minha família é gigante. Depois vi que não é o tamanho dela que conta, mas o quanto as nossas tradições duram. Há anos fazemos a ceia e o almoço de Natal na casa dos mesmos tios. Também tem a casa dos meus avós, que faz o papel de conectora da família ao longo do ano: é por ela que vemos uns aos outros, por onde correm as notícias de parentes distantes (e onde eles reaparecem), o único lugar que algumas partes anti-sociais da família frequentam. O dia em que essas duas tradições acabarem, a família se espalha, o meu fim de ano acaba e eu sou o próximo a escrever sobre como é passar o Natal sozinho comendo uma torta.
O almoço de hoje foi o maior exemplo em anos do poder de reunir a família que essa tradição tem. Apareceu tio e primo que não eram vistos há anos, que inclusive precisaram ser reapresentados a nós para que soubessem quem eram aquelas moças e aqueles garotões que eram pivetes da última vez que eles nos viram, e a família de uma tia que é daquelas que só (e muito mal) frequenta a casa dos meus avós.
Geralmente, nessas ceias, eu fico como um chato reparando nos pequenos constrangimentos que esses reencontros podem provocar. Na hora de rezar, os mais velhos o fazem enquanto os adolescentes seguram a risada naquela roda com todo mundo de mão dada. Na hora de pegar comida naquela mesa coberta por elas, pode aparecer ao seu lado com o mesmo propósito aquela tia com a qual você mal fala, mal cumprimentou quando chegou e com a qual você precisa puxar assunto porque você não pode sair da mesa sem abrir a boca, e toca falar da salada de grão de bico, elogiar a torta de padaria que a prima que não sabe cozinhar levou, etc.
Esse ano, em compensação, eu me diverti, e agora, algumas horas depois, lembro de tudo com saudade. Por ter ido com espírito um pouco melancólico, eu via as cenas de longe: a mesa dos avós na entrada, as mesas dos tios mais à frente, as mesas dos primos mais velhos com filhos pequenos, a mesa dos primos de vinte e poucos anos à beira da piscina e, nela, brincando, aqueles filhos pequenos simbolizando a nova geração da família. A tradição parece ser ameaçada pelo tempo, que apagará a casa dos avós e nos tirará da casa na qual os tios deveriam tomar os lugares da entrada (que também é saída), e nós irmos para longe da piscina. Eu espero que a tradição, ao invés de ceder ao tempo, se adapte ao seu curso inexorável e, principalmente, não deixe ninguém sozinho.

02 novembro 2009

Independência ou morte.

Fui falindo ao longo do ano e agora é oficial: fali. A primeira coisa que alguém que faliu de verdade vai fazer não vai ser postar no blog, certo. É que a minha falência é diferente. Minha família nunca vai falir (funcionário público na parada) e levamos uma vida boa, mas a minha fonte de renda acabou e, por orgulho, eu não peço dinheiro pros meus pais. Não conheço outra alma que faça o mesmo, mas isso não me faz crer que eu estou errado. Meu argumento: tenho 20 anos e acho que é idade mais que suficiente pra parar de depender do papai e da mamãe pra ir pra balada. 20 anos é idade mais que suficiente pra já estar no batente, e eu estar procurando batente pra bater não é argumento que me poupe da culpa de pegar dinheiro com os pais. Eles até querem me dar dinheiro quando me veem escolhendo comer em casa e não na faculdade pra economizar um real e noventa centavos, mas eu recuso.
Percebi quatro aspectos positivos desse estilo de vida compulsório:
- vivendo numa quase inércia eu quase não consumo e, portanto, quase não produzo lixo;
- passei a me entreter e me satisfazer com as pequenas coisas da vida que não envolvem uma compra;
- passei a entender melhor arte, pois tudo que é gratuito nessa cidade é alternativo (e quase tudo que é muito barato é ruim, como os filmes que passam na sessão das 15h do Cinemark, então vale mais a pena ainda o que é gratuito) e alternativo é arte, e fica chato não concluir algo daquilo;
- parei de fazer negócios ruins, pois sempre busco o melhor custo-benefício nem que isso leve meses.
Logo, estou vivendo uma alternativa ao capitalismo e encontrei a solução para a poluição do meio ambiente, e eis um exemplo do como fazê-lo: vá num sábado à tarde para a Vergueiro ler revista de graça, depois vá para a sessão gratuita de um filme russo lá mesmo, dê uma volta pela Paulista e arredores (e use o banheiro do Pátio Paulista, se precisar, tomando cuidado com o público que o frequenta - pelo que está escrito nas paredes, parece que o pessoal vai lá pra acabar com outras necessidades que não o número 1 ou 2) e termine o roteiro passando na Cultura para ver, e não mais que ver, os livros que estão naquelas estantes centrais. Volte pra casa exausto de tanto andar e vá dormir sem nem lembrar do que está perdendo no sábado à noite.
Foi aí que comecei a perceber que meu orgulho mais prejudica que conforta. Apesar de salvar o mundo, num determinado momento é preciso se colocar à frente dos outros e, ao pensar assim, vi como estou perdendo oportunidades. Amigos meus estão fazendo cursos e enchendo o currículo, enquanto eu faço o mesmo pela Internet informalmente e com um material menos organizado. Perco chances de conhecer pessoas novas por não estar num ambiente no qual isso é mais propício. Deixo de me divertir mais, como ao não fazer coisas que, apesar de caras, valem cada centavo. Essa economia chega a me prejudicar num sentido bem prático, como quando me recuso a xerocar alguma leitura da faculdade e vou atrás do livro do qual a xerox veio (o que leva muito tempo), quando me recuso a pagar o preço absurdo que cobram por um livro que é legal, e até ao alimentar um estilo de vida meio contrário ao que eu aprendo a alimentar na faculdade (o que, em longo prazo, pode me deixar desempregado). E quando eu achava que essas eram as únicas possibilidades de me prejudicar, vi que estava extrapolando essa economia pra tudo, desde não usando faca pra comer pra economizar talher até tirando foto com menos megapixels pra ocupar menos espaço no HD.
Não acho que economizar seja ruim. Não usar faca economiza sabão e enche menos rio de espuma. Preferir pegar livro emprestado a tirar xerox ou comprar um economiza árvore. Sabendo que eu nunca vou imprimir minhas fotos em tamanho pôster, não preciso de resolução máxima. Mesmo assim, pelo que eu perco por não aceitar os recursos de outras pessoas, concluo que o que era simples vontade de ser independente se transformou em um estilo bizarro.

19 outubro 2009

Parabéns pelo seu dia.

Tirei essa foto na estrada no dia do meu aniversário (também o dia do médico, mas fingi que não li o "18 de outubro - dia do médico" no letreiro). Depois de achar graça da Autoban me dando feliz aniversário, vi o quanto esse momento pode ser motivacional (antes de continuar, saiba que este post tem a tag 'filosofia de bairro'). No final do dia, perto de anoitecer (como na foto), quando se está geralmente cansado por causa do trabalho e os problemas povoam nossa mente, aparece um letreiro nos parabenizando pelo nosso dia. A luz dele está meio apagada (o cansaço), mas ainda existe. Demos o nosso melhor e estamos vivos, afinal.

E a vida/estrada continua.

(Já é meu papel de parede, mesmo a foto estando mal enquadrada por ter sido tirada de repente. Eu vou me envergonhar em breve deste post)

05 setembro 2009

Um sujeito bem estranho, segurando um monte de sacolas, sentou-se ao meu lado. Estava com ar de quem tem mil coisas pra fazer. Tirou de uma das sacolas um pote com nozes e começou a comê-las, com ar impaciente, mas delicado. De vez em quando dava uns suspiros. Dali a pouco ajeitou tudo, levantou e, no banco que ocupava, ficou um papel de cor amarelo-post-it. Bati o olho nele e vi escrito "Poesia solta - Amigo inusitado". Saquei que ele tinha deixado o papel ali de propósito, afinal a poesia era solta, e o amigo, inusitado.
Aquilo para mim era o máximo: eu já tinha ouvido falar em bookcrossing, mas não achava que aquilo existia de fato, muito menos que o "crossing" já não se limitava a "book".
Fiquei esperando que ele fosse embora para começar a ler. Eis que um cara no banco da frente olhou para trás. Viu o papel amarelo-post-it contrastando com o banco cinzento. Virou-se para frente lentamente, como se estivesse pensando. Olhou para o papel de novo e acabou com tudo:
- Ei, você. Esqueceu esse papel?
O sujeito hesitou, acabou dizendo que sim. Guardou a poesia solta numa das sacolas, resmungou alguma coisa e foi embora. Guardei a curiosidade com o amigo inusitado, resmunguei pra quê tanta educação e fui embora.

31 julho 2009

A cena.

Apesar de ter muita coisa pra fazer, lá estava eu andando pela Paulista. O clima frio, as pessoas passando por mim, meu olhar contemplando tudo. Parei para descansar num lugar a salvo do vento, tirei um livro da mochila. Logo apareceu uma senhora. Me chamou e disse que estava com frio, e que não tinha como pagar um café para se aquecer. Eu disse que, infelizmente, também não tinha como pagar um café, nem para mim... Silêncio. Ela disse que trabalhava em igreja, e me perguntou de qual santo eu era devoto. Respondi que não sabia como escolher um santo para ser devoto. Ela perguntou se eu queria um santinho. Agradeci e respondi que não queria, e perguntei como eu escolhia um santo. Ela não respondeu; escolheu um para mim, me deu, se despediu e foi embora.
OK, agora a cena como aconteceu de verdade.
Eu estava na Vergueiro e precisava ir até o final da Paulista pegar um livro, sendo que estava um frio do cão e chovendo. Fiz esse caminho a pé pra não pagar ônibus, muito menos metrô. O clima superfrio, as pessoas passando azuis por mim, meus olhos congelando. Finalmente cheguei no meu destino e entrei correndo no Conjunto Nacional. Fiquei embaçando na Cultura até cansar, e com todos os pufes ocupados por gente lendo de graça, resolvi procurar um banco do lado de fora pra descansar. O único disponível ficava num corredor de vento. Tirei um livro chato da mala pra esquecer do frio, e eis que aparece uma "melhor idade" cheia de sacola, tirando as sandálias e espremendo as meias. Só fiquei esperando. Levou pouco tempo para ela começar a narrar suas desgraças e, no final, pedir dinheiro para um café. Falei que estava cansado de ser assaltado (fui uma vez) e, por isso, não andava mais com dinheiro. Como ela ficou muda, eu não sabia se podia voltar à minha leitura, então ficou aquele climão por alguns momentos até eu resolver ler - e claro, foi só recomeçar pra ela falar alguma coisa. Disse que trabalhava em igreja, e eu pensei "só falta ser tipo testemunha de jeová" (errei). Eu disse que não era devoto de nenhum santo, e que escolhi um para ser na catequese, e peguei o que era do dia do meu aniversário. Ela perguntou se eu não queria um santinho, e como se me conhecesse há anos, disse "é de graça". Apesar de insistir em não querer, ela me deu um da nossa senhora. Nossa Senhora da Cabeça.

Nossa Senhora da Cabeça. De onde surgiu isso?

Comecei a ler o santinho, tentando achar alguma justificativa para a existência de uma imagem santa segurando uma cabeça sem corpo, e até tinha. Depois de ler tudo, achei que deveria continuar demonstrando interesse, já que era de graça, e fingi que ainda estava lendo, mas a situação começou a ficar insustentável. Disse obrigado e comecei a me ajeitar pra cair fora, mas ela disse "tchau pra você" e caiu fora antes, provavelmente buscando um outro banco no qual tivesse mais sorte. Ainda saiu mancando para dar o toque dramático.
Nossa conversa foi bem amena, na verdade. Abusei de eufemismos e tentei puxar conversa, até, como ao perguntar como se escolhe um santo, para evitar climão e por um motivo constrangedor: para tentar fazer aquilo virar uma... cena. Gosto de ver momentos como cenas. Andar na rua ouvindo música com fones isoladores de som, por exemplo, só não vira uma cena de filme perfeita porque tudo não se passa em câmera lenta. Como se não bastasse, numa mania estranha, fico tentando tirar filosofias, significados de qualquer coisa. Aquela mulher que eu nunca vi e nunca mais devo ver foi a chance de originar uma miríade de filosofias de bairro das quais tenho vergonha de ter pensado, e pior, de colocá-las numa "cena". Muito pior, num "filme". Sim, nunca serei roteirista.

25 junho 2009

Sou viciado em notícias. Canais de notícias, pequenos noticiários, portais de notícias. Eis que, vendo um jornal local, o apresentador fala, no final, que no jornal seguinte, de âmbito nacional, seriam dadas mais informações sobre o estado de saúde do Michael Jackson. Não estava sabendo disso, e liguei direto na Band News, um dos meus canais preferidos por ser de notícias e por ter várias faixas de informação passando ao mesmo tempo, com as mais importantes circulando numa berrante faixa vermelha. Uma imagem de helicóptero mostrava o hospital no qual ele está internado, e dizia-se a cada minuto, com o cuidado de trocar as palavras a cada intervalo desses para não cansar o telespectador, que uns diziam que ele estava em coma, outros que ele estava morto. Fiquei hipnotizado por alguns minutos até começar a pensar sobre o porquê de estar vendo aquilo. Não tem utilidade saber que o Michael Jackson está morrendo. Eu nem gosto dele. Pus na Globo News, meu segundo canal preferido de notícias porque, apesar de não ter uma faixa com as notícias mais sensacionais em vermelho, eu sei a hora em que o jornal começa (a cada hora redonda). Dou de cara com a mesma imagem de helicóptero do hospital no qual ele estava. Fiquei meio apreensivo. Pus nesse canal para testar a popularidade da notícia, mas não esperava encontrar até a mesma imagem. Pus na CNN, que só não é meu canal preferido de notícias porque os âncoras não facilitam no inglês para estrangeiros. Surpresa: a mesma imagem de helicóptero do hospital no qual Michael Jackson está, com um âncora falando as mesmas informações dos canais anteriores, mas intercaladas com algumas expressões de surpresa, além de uma grande faixa amarela escrito "Breaking News", uma faixa preta falando que ele provavelmente está morto (mas que nada está confirmado pela CNN), e uma outra faixa dando detalhes como o remédio dado a ele pelos médicos. Dada a amplitude da notícia, pus na Fox News, canal norte-americano que não se propõe a ser internacional, mas sim a ser sensacionalista. A imagem estava dividida entre o âncora falando as mesmas informações dos canais anteriores e imagens de arquivo do Michael Jackson. Não acreditei na amplitude de uma notícia que eu não acredito ser tão, tão importante. Como último recurso, já tentando fugir dessa notícia sentindo uma espécie de medo, pus na BBC World News, canal local reservado a notícias européias. A mesma imagem de helicóptero de quase todos os canais anteriores revelou-se na tela, com uma faixa vermelha noticiando a morte de Michael Jackson. Lembrei da Record News e fui direto para ela, com o medo aumentando. A imagem de helicóptero.
Minha irmã chegou em casa falando ao abrir a porta "O Michael Jackson morreu! Não acredito! Põe no Multishow que tão passando todos os clipes dele!" Pus, e dei de cara com o final de Thriller, no qual o Michael Jackson está com olhos verdes brilhantes, como os de um monstro, com a tela se aproximando de sua cara enquanto uma risada diabólica envolve a cena.
Minha nascente posição crítica sobre a notícia transformou-se em medo. A última vez que vi algo do tipo acontecer foi nos atentados de 11 de setembro, que exerceram o impacto que exerceram. Tenho medo do que possa acontecer depois da morte de Michael Jackson.

(Devolvi na CNN. Uma mulher na porta do hospital diz para o repórter "Estou tão triste... ele criou o moonwalk, é devastador", e chora.)

07 junho 2009

Capítulo XXIX: o Imperador.

Fui comprar uma blusa. A que eu queria não tinha no meu tamanho. Enquanto eu esperava um funcionário procurar a G no estoque, imaginei uma situação toda. Como ele achou, esqueci tudo. Cheguei no caixa. Ouvi "Vamos fazer um cartão da loja, senhor?", e isso me subiu o sangue.
Há um tempo resolvi fazer esse cartão para ter descontos na compra. Para fazê-lo, era preciso ter pelo menos o RG, e nem com isso eu estava. Doida que estava a vendedora pensando em sua comissão, aceitou a carteirinha da faculdade para começar o processo. Ela disse para mim e depois ficou repetindo para si mesma, "Eles precisam abrir uma exceção...". Me passaram para mãos mais burocráticas. Depois de um olé de mais de uma hora, recebi a notícia de que meu crédito não tinha sido aprovado, e que eu poderia tentar novamente só depois de um mês. Saí da loja dando juras de desamor a ela, juras de nunca mais voltar. E lá estava eu na boca do caixa. Voltei.
"Não, vocês já me recusaram crédito uma vez", respondi, com esperanças de ter vencido a ambição da moça. Ela perguntou "Mas há quanto tempo isso aconteceu?", e fez uma cara analítica e confiante. Analítica porque a minha resposta era o x de uma equação que ela já tinha pronta na mente, e confiante porque ela sabia resolvê-la. Ao invés de dizer o x, já respondi a equação toda: "olha, foi há mais de um mês, mas eu não quero saber desse cartão, vocês terem recusado crédito foi uma humilhação pra mim". "Moço..." Paguei, disse obrigado para a caixa que não tinha a ver com a situação, fui embora nervoso. Por causa disso, a tal "situação toda" imaginada voltou, e maior.
O funcionário chegou e disse "Não tem G". Eu disse "Quero falar com o seu gerente". Aí já estava eu falando para o gerente "Como vocês podem só pôr blusa M na loja? Vocês querem perder essa compra? E vocês devem ter um lucro enorme com essa blusa, 80 reais?, deve ser uns 20 para fabricá-la, é época de frio, essa marca só é distribuída por vocês, senão eu já estava fora daqui, só o monopólio pra fazer uma loja manter um atendimento desses". Ele descaradamente perguntou "E o que você quer que eu faça?", e eu "Eu tenho cara de consultoria? Se você quer que eu te ajude me contrata!", e depois que eu falei onde estudava e meu curso, ele me contratou. Saí ligando para pessoas radiante, "Arranjei estágio do jeito mais louco possível!", e de repente caí na real. Eu estava me sentindo feliz de verdade, como se tudo isso tivesse acontecido, sendo que eu estava era dentro dum busão, segurando uma sacola com uma blusa G dentro, tão ali quanto cada pessoa ali.
Isso vive acontecendo comigo, e não sei o que isso significa. Eu vejo algo acontecendo e imagino n situações decorrendo daquilo, paranoicamente. Nessas eu já me imaginei, por exemplo, sendo morto a tiros, queimado, esmagado, degolado; matando várias pessoas de diversos modos, desde soltando a mão dela na beira de um precipício, até metendo um carro que eu dirigia num obstáculo qualquer para o passageiro voar; sendo assaltado, e reagindo de diversas maneiras, às vezes morrendo, às vezes sendo ferido e levado pro hospital, às vezes me dando bem; tendo coragem de falar o que eu penso e obtendo a resposta que vai me garantir felicidade pela vida inteira (ilusão dentro de ilusão); morando no meu AP dos sonhos; sendo bem-sucedido no trabalho; et cetera. São coisas terríveis e maravilhosas.
Não sei bem o que concluir desses "momentos". Porém, encontrei uma explicação simples do porquê de isso acontecer: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus." Eu sou normal, o problema é o tal recanto. Ou pelo menos não sou louco sozinho.

24 maio 2009

"Não há realidade feliz que valha a décima parte de um sonho bom."
- Humberto de Campos, A mosca azul

Temo que isso seja verdade.

24 fevereiro 2009

Encontros.

A vida boa de trabalhar na Disney é ter entrada gratuita em todos os parques. Quando não se tinha nada pra fazer, o negócio era ir pra um parque e se divertir, na medida do possível (já que a Disney é para crianças) até a hora do trabalho. Pouca gente fazia isso. Numa das vezes que eu fiz, fui em uma montanha-russa com uma mulher que eu não conhecia. Logo que o carrinho andou eu levantei as mãos e ela ficou segurando. Como cast member simpaticão eu puxei assunto e falei pra ela levantar a mão, e ela "não, eu tenho medo!" (em inglês, ela era americana). Eu fiquei insistindo e, numa queda pequena, ela levantou. Eu fiquei falando que não precisava ter medo e fiquei felizão, com os braços levantados, pra "dar exemplo". Numa hora que o carrinho volta de costas eu fiquei cantando pra ela levantar os braços, e ela conseguiu! Quando chegou a hora da maior queda, no começo da qual eles batem uma foto, eu gritei pra ela não ter medo e levantar os braços. E eis que saí na foto com os braços levantados e ela com a boca enorme de aberta gritando e com os braços levantados, mas um deles segurando no meu pulso! Ela ficou falando pros dois do carrinho da frente que ela conhecia, "eu fiz um amigo pra vida inteira!", e não abaixou mais os braços.
Trabalhando também é possível fazer esses amigos pra vida inteira. Quando cast members brasileiros passavam um pelo outro, sempre rolava uma conversinha ou um cumprimento. Numa noite eu estava trabalhando perto de uma tenda que vendia brindes, e o brasileiro que trabalhava nela puxou conversa. Quando caiu no assunto de lutar para conseguir ir trabalhar lá, o assunto ficou mais genérico e virou lutar para conseguir qualquer coisa. Ele não acreditou quando eu disse que estava passando fome pra juntar dinheiro, assim como eu não acreditei quando ele falou que, aos 20 anos, conseguiu comprar um carro zero sem pedir ajuda de ninguém. A conversa durou quase uma hora, e por ela soube que ele já passou pelo que eu planejava passar. Falei para ele que a minha idéia era voltar pro Brasil e já sair de casa para conquistar minha tão sonhada independência, e que nada me faria mudar de idéia. Ele disse que pensava assim, mas que era perfeitamente independente morando na casa dos pais e que ainda tinha roupa lavada e comida na mesa. Nunca pensei em independência por esse aspecto, e isso me fez desencanar de chegar aqui e sair correndo de casa e de me matar pra juntar dinheiro para algo a longo prazo, como eu sempre fiz e continuava a fazer lá.
Como eu desisti disso, sobrou dinheiro. Pesquisei por meses preços de notebook, desde antes de viajar, e não encontrava pelo preço que queria. Num dia iluminado resolvi comprar um baratão e não tão bom e ir para Nova York! Porém, ninguém topava ir para lá do nada e dali a alguns dias, então eu teria de ir sozinho... eu tinha ido pros Estados Unidos até com blusa de frio para encarar a temperatura que poderia fazer lá. Não ir seria uma frustração muito grande.
Num outro dia iluminado, uma turista brasileira puxou conversa comigo e com outra lixeira/gari/faxineira brasileira. A conversa foi muito longa e muito boa porque a mulher costumava viajar muito. Ela já tinha ido para Nova York e eu falei dos meus planos. Ela me apoiou, independente de ir sozinho ou não. Eu já estava inclinado a não ir, mais uma vez fazendo planos de ir dali a x anos, mais uma vez pensando somente a longo prazo... Além disso, ela disse que tinha lutado contra o câncer por 10 anos, e há pouco tempo tinha vencido. Não que ela deva se tornar um guia espiritual por isso, mas ela sabia mais do que eu e me lembrou que eu não sei se vou estar vivo nem daqui a um minuto. Dali a alguns dias, eu estava quase clicando no OK para comprar minhas passagens para o dia seguinte para Nova York. Pensei por horas se deveria clicar naquele OK e, no último momento, minha prima, por MSN, falou "CLICA CLICA CLICA". Fiquei em pé, na frente do notebook do meu roomate, olhando para a tela, perdido. Eu tinha acabado de clicar. Saí correndo para fazer a mala, fui trabalhar, voltei à noite, tomei banho e fui embora, sozinho, para pegar o último ônibus do dia para o aeroporto, para dormir lá e pegar o primeiro vôo do dia seguinte.
Fiquei num albergue num quarto para 12 pessoas, entre elas dois franceses. Os dois foram muito gentis comigo. No dia que eu cheguei perguntaram se eu queria jogar pôquer, e eu recusei por estar cansado demais da viagem e de toda a adrenalina envolvida. Antes disso eu perguntei sobre alguns lugares de Nova York e um deles me deu um mapa tamanho família de lá. Ele disse que eles não precisariam mais dele. Mesmo assim, eles poderiam levar de recordação, mas como eu precisava eles me deram, e eu achei isso demais.
No meu último dia lá, voltando para o aeroporto para ir embora, entrou no ônibus uma família de brasileiros. Puxei conversa com eles, claro. Eles estavam indo para lá também porque não agüentavam mais o frio (naquele dia acho que chegou a -15 graus) e queriam antecipar a volta. Receberam a má notícia de que isso custaria quase 1000 dólares. Fiz a minha parte: recomendei vários lugares fechados para eles irem, dei uns cupons de desconto que eu tinha e... dei meu MetroCard. Isso é um cartão para utilizar o transporte público, e o meu era ilimitado por uma semana. Eu não precisaria mais dele. Mesmo assim, eu queria levar de recordação, mas eles precisavam...
O que eu aprendi nessa viagem veio da convivência com muitas pessoas, mas essas marcaram porque passaram uma vez por mim e eu nunca mais as vi. A mulher da montanha-russa eu também nunca mais vou ver, porque além de ela estar lá e eu estar aqui, eu não lembro tão bem da cara dela. O brasileiro eu vi mais algumas vezes e ele sempre me perguntava se eu estava comendo direito, mas a partir de agora é cada um no seu lado do Brasil, lutando. A turista que me motivou é carioca e viaja o mundo; se eu encontrá-la por aí, vou agradecer por aquilo. Os dois franceses foram embora do albergue no dia seguinte, e quem sabe eu os encontre num mochilão na Europa ou num outro albergue em algum lugar do mundo. E a família brasileira, eu espero que esteja bem, que tenha passado mais calor e passado uma boa ação para um turista perdido pra frente. Mesmo que eu nunca encontre de novo qualquer um deles, eu não vou esquecê-los por terem feito a diferença para mim, assim como talvez algum deles lembre do louco que viajou sozinho e sabia bastante do transporte público nova-iorquino, do brasileiro do albergue com cara de acabado e perdido, do lixeiro que queria conhecer Nova York, do cara que passava fome para ser independente ou do cast member que ficava falando pra levantar a mão.