11 agosto 2020

Confiando nos outros.

 Acordei às 2 da manhã e olhei para o lado. Ele estava lá, dormindo profundamente. Tão perfeito que nem roncava, mesmo dormindo de barriga pra cima. Não que eu pudesse ver seus olhos, já que estavam fechados, mas ainda assim eu podia ver tranquilidade no olhar dele. Os músculos do rosto totalmente descontraídos, a respiração profunda e limpa.

Era nosso terceiro encontro e lá estava ele, dormindo na minha cama. Apesar de nenhum detalhe da cena sugerir isso, o que eu mais me perguntava era: como ele confiou em mim para vir dormir na minha cama se mal nos conhecemos?

Não confio em ninguém. Como eu mesmo o deixei vir dormir em casa? Uma parte dessa deixa foi o excesso de álcool, claro, tanto que acordei depois do sono leve de ébrio e estava ali, receoso, olhando para ele. Como ele confiou em mim e como veio para a minha casa, onde eu sabia onde estava cada objeto pontiagudo, cada chave para trancar cada porta, cada pano para tapar a boca dele?

Faz 10 anos que, todo ano, testo minha sorte dormindo em albergues a cada mochilão. Há alguns anos, voltando de um carnaval, estava no aeroporto com a amiga de uma amiga e o pai dela, que me perguntou como é possível sequer existirem albergues. É tão fácil para uma pessoa matar outra. Como isso não acontece? Respondi que as pessoas são melhores do que imaginamos, e que passei por um só apuro relacionado a roubo num albergue, nada relacionado a violência. Depois me perguntei mentalmente: como eu confio em até 20 pessoas no mesmo quarto, vindas de qualquer canto do planeta, sobre as quais não sei nada, e não em uma pessoa com a qual conversei 3 vezes por 2 horas cada?

Ano passado dividi um quarto de albergue com russos. Descobri que eram russos depois de mandar um áudio da conversa deles para um amigo russo, que me confirmou que eram seus conterrâneos. Neste caso, se estivessem arquitetando um plano para uma carnificina naquele quarto de albergue, eu não teria a menor ideia, já que não há palavra em russo que pareça com algo que conhecemos.

Há alguns anos trabalhei viajando muito, o que fazia com que fosse necessário, do meu ponto de vista, duas vezes por semana, entregar minha vida nas mãos de dois completos desconhecidos: o piloto e o co-piloto do avião. Nas primeiras viagens, achava que as pessoas, calmamente lendo em seus assentos, estavam num surto coletivo em que negavam quão entregues estavam nas mãos deles. O pai protetor nega que o futuro da sua família esteja nas mãos de outra pessoa. A pessoa que diz que aviões são seguros nega que o piloto possa estar num dia ruim, querendo se matar, e que por isso vai levar os 170 passageiros junto.

Imagino que não confiemos nos outros de modo consciente. Do contrário, analisando as possibilidades, seria difícil viver. Impossível andar na rua pensando que os motoristas de todos os carros passando a 1 metro de distância precisam continuar dirigindo do melhor modo possível ao invés de subir na calçada. Ou que todas as pessoas passando pela seção de itens para casa do mercado, cheia de facas afiadas, precisam ser sãs mentalmente para não pegar uma delas e fazerem o que quiserem.

Entendo que é preciso confiar "porque sim", porque as pessoas são melhores do que imaginamos, como falei para o pai da amiga da amiga, ainda que eu mesmo não acreditasse nisso. Por isso levei ele para casa. Mas era melhor não ter levado.

19 agosto 2011

Vivendo em Santiago.

A imagem que se tem de Santiago quando se mora em Sao Paulo é a de que se trata de uma cidade pequena. Porém, só de ver o mapa do metrô, que sequer cobre toda a cidade, se ve que é uma cidade muito extensa. Isso se deve principalmente ao custo de construir prédios aqui, que é muito caro já que são necessários sistemas que compensem tremores e terremotos. Por isso, ao contrário do que se vê do topo do Edifício Itália (um monte de prédio), quando se sobe até o topo do Cerro San Cristóbal, o ponto mais alto dentro da cidade, se vê uma cidade muito extensa e com poucos prédios, localizada numa espécie de vale, e cercada por todos os lados por cordilheiras. Inclusive, para ir para a praia há um túnel de alguns quilômetros que “fura” uma das montanhas da cordilheira. Por sinal, os Andes no inverno são uma vista incrível que se pode ter de qualquer lugar da cidade. Eles estão cheios de neve, e quando neva mais fica realmente bonito. Todos os dias eu tiro fotos deles.
Até agora, um mês e meio depois, eu vivi na bolha de Santiago que envolve o centro e dois ou três bairros mais próximos do centro. Tudo o que eu digo sobre a cidade é baseado nisso.
Santiago é uma cidade bonita e organizada. As calçadas são largas, com espaço para uma faixa para pedestres, outra para ciclistas e, entre elas, uma com árvores, isso em muitíssimas ruas. Agora as árvores estaão todas com aquelas folhas marrons, já que é inverno, o que dá um aspecto europeu à cidade.
Por sinal, o inverno aqui nao é tão forte quanto o europeu, mas se sofre muito mais. Eu já peguei dias com -2 graus, e dizem que no verao chega a 35. Somando-se o fato de que aqui a energia é cara, temos uma cidade com temperaturas extremas que nao está preparada para qualquer um dos extremos. A exceção óbvia está nos bairros mais ricos, que é onde estão as casas com calefacão. Mesmo assim, um gerente do trampo chegou reclamando esses dias falando que a conta de gás da casa dele veio mil dólares depois de colocar calefação.
Isso cria todo tipo de inconveniente que se pode imaginar. Eu durmo com 4 cobertores e vestindo uma blusa. Com tanto frio, trocar de roupa de manhã para ir trabalhar é o momento que estraga o dia todo. Já tentei trocar de roupa debaixo dos cobertores, dormir com a roupa que vou por no dia seguinte, trocar de roupa em cima da estufa (a estufa é um negócio que gera calor ou por energia elétrica ou por um botijao de gás), mas depois de meia hora e só conseguir colocar a calça, até a camisa 200% poliéster amassar, e quase queimar a roupa, respectivamente, vi que o jeito era encarar o frio.
Outro problema é para lavar roupa. Com tanto frio e a energia sendo cara, se lava a roupa, mas ela não seca. É preciso estendê-las perto de uma estufa e deixá-las ali por dias. Some-se a isso o fato de a máquina de lavar da casa na qual estou estar quebrada e temos que se leva duas semanas para lavar roupa. Semana retrasada fui para festas na sexta e no sábado à noite e estava morto demais para lembrar de dar minhas roupas para a mãe da casa lavar na casa da filha dela. Agora, duas semanas depois, estou com duas camisetas limpas, e só.
O caminho seria comprar mais roupas. Aqui tem uma comuna, a Patronato, que é o Bom Retiro de Santiago. Fui lá mas não comprei nada, porque eu nao sei o que é bom e o que nao é e a mina que foi comigo nao estava tão disposta a ajudar com algo além de “oh, tá barato”. Fui para o shopping. Mesmo assim, comprando roupa em outro país se perde todas as referências de marca que se tem, porque as marcas locais que são as melhores são outras. No fim das contas, ontem fui trabalhar com uma camisa emprestada de um amigo. Camisa, por sinal, amassada, já que não tem tábua de passar na minha casa, nem f*dendo eu vou gastar dinheiro com uma e, em quase dois meses, eu fui o único a tentar passar roupa porque energia aqui é cara e com o frio que faz se usa blusa por cima da camisa e ninguém vê os amassados.
Por fim, falando da parte boa, aqui há uma comuna, a Bellavista, que é a Vila Madalena e a Vila Olímpia juntas (não em tamanho, mas em variedade). Há muitas baladas de música eletrônica, igual a São Paulo, mas também há as de cumbia e de salsa. Cumbia é música brega com batida latina e que faz sucesso entre os jovens. Por sinal, aqui toca axé e funk de dez anos atrás, como a Dança do Vampiro e Tapinha Nao Dói, mas fale para um chileno que uma é axé e a outra funk que eles se surpreendem ao saber que há diferença entre os dois tipos.
Nessa mesma comuna há muitos bares, dos mais flaites (como se chama aqui um mano, ou alguma coisa vulgar) aos que chegam a cobrar mais de 8 reais (mais de 2 mil pesos chilenos) por uma garrafa de cerveja Cristal ou Escudo (as que bombam aqui). Pode-se andar pelas ruas da Bellavista à noite sem medo.
Concluindo, Santiago é uma cidade bonita, com jeitão europeu, grande, organizada. Mas como o maior choque cultural que tive foi no supermercado (assunto de outro post), acho que ela padece do mesmo mal de todas as cidades muito cosmopolitas: se tornam iguais umas às outras. Os mesmos bairros, “o plano geral da coisa”. Santiago é Sao Paulo em espanhol e com abacate. Que, por sinal, é assunto de outro post.

29 julho 2011

1 mês de Santiago.

Hoje faz um mês que estou em Santiago, e nunca postei sobre o que rola aqui. Eu poderia sair falando de todas as diferenças culturais em relação ao Brasil (que existem, são numerosas, mas não tão impactantes) neste post, mas não quero esgotar o tema.
Quando o avião acabou de pousar no aeroporto eu já tive um vislumbre de que as coisas aqui não eram tão diferentes. Ao longe, em algum ponto do aeroporto, estava o logo da Petrobras. Saindo do avião, a caminho da imigração, uma propaganda da Claro. Saindo do aeroporto, indo para onde eu ficaria por um dia, vi a noite em uma cidade bonita, com calçadas largas, algumas delas com espaço para ciclistas, mais arborizada - como um bairro nobre de São Paulo.
Até aquele momento eu falava portunhol. Tudo o que estudei por conta própria não era páreo para o espanhol chileno, que é rápido, com diversas expressões locais e ainda falado sem algumas letras. Na imigração, quando achei que teria que soltar o verbo, só falei um "gracias", porque o cara só me falou "hola" e "listo". No carro, fui falando mais, mas a cada três palavras pedindo pros caras que foram me buscar repetir o que diziam.
A noite era fria, e dentro da casa para a qual fui havia um aquecedor. A casa parecia estar num bairro de periferia, pois as ruas eram escuras, pequenas, e as casas humildes. Porém, no dia seguinte descobri que ficava ao lado de uma estação de metrô, e que há muitas estações de metrô em Santiago e que aquele bairro na verdade era um dos próximos do centro.
A casa na qual estava por aquele dia era uma na qual moravam 11 estrangeiros. No dia seguinte eu estava vendo televisão na sala com 2 americanos, 1 chileno e uma chinesa, e os outros colombianos, finlandeses e alemães já estavam no trabalho.
Eu conheci São Paulo andando, e queria fazer o mesmo aqui em Santiago. Porém, estava muito frio e chovendo, e eu não tinha um guarda-chuva (aqui, "paraguas"). Pus uma blusa impermeável e fui conhecer o metrô. Para isso comprei um Bip!, o Bilhete Único daqui.
E aquela foi a diversão do dia. À noite fui para a AIESEC, acompanhei um processo seletivo de novos membros, me usaram como exemplo do que é o trabalho da AIESEC e eu só respondia com acenos. Depois, me levaram para a casa na qual estou desde então, e fui recebido pela mãe da casa. Me mandou tomar banho e ficou conversando comigo enquanto eu comia a pratada de macarrão que ela me fez. Falava em espanhol devagar, porque já tem experiência em receber estrangeiros.
Fui dormir embaixo de 5 cobertores, e com tanto frio hibernei por quase 12 horas. Quando acordei, a mãe da casa me disse para ter cuidado ao andar por Santiago, porque havia um protesto estudantil. Saí correndo para ir ver o protesto, e tive meu primeiro contato com... gás lacrimogêneo. Comi um completo (um cachorro-quente com repolho, tomate picado e molho) e fui conhecer outros lugares.
Voltei para casa à noite e havia dois holandeses jantando com os pais da casa. A mãe me trouxe uma pratada de... carne. Como eu não havia dito que não gostava, me senti na obrigação de comer.
O dia seguinte foi o primeiro dia de trabalho. Teoricamente. Minha chefa disse que estava muito atarefada e não teria tempo de me receber. Me mandou ir tirar o visto. No fim das contas, fui ver Transformers com um casal (aqui ficar de vela é "tocar el violín"), legendado em espanhol. À noite, pisco (a cachaça daqui) em casa. Com dois copos já fiquei de fogo.
Três dias que resumiram boa parte do que eu veria no meu primeiro mês: mais carne, mais pisco, mais completo, mais gás lacrimogêneo...